Na antiguidade os egípcios, gregos e romanos acreditavam que, se houvesse alma, ela morava no coração. Quando o coração parava, ela ia embora. Sabe-se lá para qual destino. Até hoje, coisas do espírito, da emoção e até da razão, em variadas formas, são associadas ao coração.
Os jogadores de futebol, depois do gol, comemoram batendo com as mãos no coração. Aprendem os a decorar a tabuadinha para multiplicarmos “de cor” (com o coração). E muitas vezes, ficamos desacorçoados (sem coração), ou seja, desanimados – sem ânimo, sem alma. Por falar nisso, lembrei-me de uma maravilhosa canção napolitana: “Anema e core” (Anima e Cuore, em italiano).
Esse intróito foi para, em seguida, contar um pouco do que nas minhas leituras achei interessante sobre a circulação sanguínea. Evidentemente, não ousarei entrar em detalhes anatômicos e fisiológicos. Para isso, temos inúmeros médicos capacitados. Por exemplo, o Dr. Edgard Steffen que, além de excelente pessoa, escreve primorosos artigos que me são indispensáveis nas leituras das manhãs de sábado.
Falarei, portanto, como leigo que sou nesse assunto. Mas falo disso até porque, depois do infarto que tive, “tocam-me as coisas do coração”. E, também, por gostar de ler histórias da medicina. Tenho diversos livros sobre esse assunto. Tenho e li. Entre eles, “Caminhos Mesclados”, de autoria do Dr. João Rozas Barrios (também uma excelente pessoa).
O primeiro estudioso sobre a articulação sanguínea foi o grego Cláudio Galeno (sempre tem um “grego primordial” na maioria dos estudos). E, historicamente, esta narrativa começa quando, em meados do segundo século da nossa era, Galeno era o médico-chefe dos gladiadores de Pérgamo – posto, hoje, talvez comparável ao de plantonista em pronto socorro carioca. Naquela função, Galeno teve a chance de observar inúmeros homens gravemente feridos, muitos “de peito aberto”, e, perspicaz que era, inferir (sem trocadilho) coisas fundamentais sobre o funcionamento do coração. Todavia, ele omitiu isso nos seus escritos, dizendo que suas conclusões eram fruto de observações de dissecações de animais mortos. Esse fato deixava os estudiosos que o sucederam intrigados, pois num corpo morto as artérias não contêm sangue. Quando o coração para, as artérias se contraem e todo o sangue vai para as veias. Por isso, algumas conclusões de Galeno eram aparentemente contraditórias.
Só bem mais tarde, no século XVI, os escritos de Galeno foram objeto de análises detalhadas pelo médico espanhol Miguel Servet. E de suas próprias observações na dissecação de cadáveres, Servet deduziu, entre outras coisas, que o único jeito de o sangue do ventrículo direito passar para o esquerdo era através da artéria pulmonar e pelo pulmão. Uma verdadeira heresia, pois, acreditava-se que o septo de separação entre os ventrículos era poroso.
Na época, além dessa constatação errônea, permanecia a crença de que era o fígado que, além de fabricar, bombeava o sangue para o resto do corpo. Isso corroborava com a importância dada às “coisas figadais”. Torna-se inevitável uma digressão sobre os termos: “o amigo do coração e o inimigo figadal”. Esses designativos adquirem uma mutabilidade inacreditável sob a influência da miasmática atmosfera de Brasilia. “Ontem, amigos cordiais; hoje, inimigos figadais”. Ou vice-versa, “mutais mutandis”.
De volta a Servet: ele, em 1546, descreveu sobre suas descobertas anatômicas e fisiológicas numa parte de um texto em que punha em dúvida a natureza da Santíssima Trindade e o significado do ato do batismo. Orgulhoso do seu texto que hoje em meios acadêmicos, é pedantemente designado como “paper”, enviou uma cópia para João Calvino. O pioneiro protestante julgou aquela produção repugnante, aconselhando Servet a queimá-la.
Mas em 1553, Servet, vaidoso de suas descobertas, pagou pela publicação de sua obra. Com isso, selou seu destino. Acabou sendo preso pelo clero francês, em razão de as autoridades católicas terem abominado aquela “coisa herética”. No entanto, Servet conseguiu fugir durante o julgamento e, depois de perambular pela França por uns quatro meses, acabou indo para Genebra. E, como “Genebra era de Calvino”, lá foi preso e levado para a fogueira no dia 27 de outubro de 1553.
E por que todo esse papo sobre Servet? Para evidenciar que a descoberta das funções do coração e da circulação do sangue no corpo humano não se deve unicamente ao inglês William Harvey (1578-1657), com base somente em Galeno. Está correto que Harvey, além de ser considerado o introdutor da experimentação na medicina, foi quem, magistralmente, deu as explicações definitivas, mas o fez também com base nas descobertas de Servet, bem como nas dos italianos Realdo Colombo e Girolamo Fabrici. Todos, em geral, britanicamente ignorados. Coisa de desacorçoar qualquer um.
(*06/06/1946 | ➕01/7/2019)
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Professor Dal”.