Tem certos “causos” que a gente conta até como forma de exorcismo ou de catarse para purificar a alma. Este fato ocorreu em meados do ano de 1968. Eu era secretário de Edificações e Urbanismo da Prefeitura de Sorocaba. Naquela época, em função do bom relacionamento do então prefeito Flávio Chaves com o governo do Estado, diversas obras foram implantadas no sistema viário de nossa cidade.
Colaborações do Estado que, entretanto, acabaram sendo mais simbólicas do que efetivas. O custo maior ficou mesmo por conta do município. O pessoal do Estado vinha com toda pompa nas inaugurações, em geral em agosto, mês em que se comemora o aniversário de nossa cidade. Naquele e nos anos seguintes foram construídos novos pontilhões na Praça da Bandeira, na rua Padre Madureira, sob a velha estrada de Ferro Sorocabana, bem como um sob a Estrada de Ferro Votorantim, que, através da Praça Lions, promove a interligação entre as avenidas Dom Aguirre e Afonso Vergueiro.
Hoje, a nova geração nem imagina como eram as passagens sob as ferrovias: um veículo de cada vez e sem calçadas para pedestres. Os dois pontilhões da Praça da Bandeira e da Rua Padre Madureira pareciam obras medievais. Enfim, eram bem diferentes dos que hoje integram a paisagem urbana de nossa cidade.
Abrindo um parêntese: imaginem como estaria o nosso trânsito sem a eliminação desses gargalos. Além disso, muita coisa nova foi feita posteriormente e muitas ainda deverão ser realizadas. A cidade é um organismo vivo que precisa ser continuamente provido de artérias e pontes para não enfartar. Voltemos aos pontilhões. Eu, embora relativamente jovem naquela época, fui coordenador daquelas obras. Isso foi e é motivo de satisfação para mim. Mas nem tudo foi só alegria.
Por infelicidade, um operário morreu durante a execução das obras dos pontilhões da Praça da Bandeira. A lança de um guindaste enroscou nas linhas de alta tensão que por lá passavam. E aquele operário, como um desses cuja existência a maioria das pessoas nem nota, tentou resolver o problema com as próprias mãos e acabou sendo eletrocutado.
Era um jovem de 28 anos, moreno, forte, de um biotipo padrão brasileiro e que, por alguns dias, foi notícia nos nossos periódicos — mais pelo fato do que pela pessoa. O engenheiro da empresa (FEM), responsável pela implantação das estruturas metálicas ficou apavorado e sinceramente angustiado. Tentou localizar os familiares do rapaz e não conseguiu. Era mais um desses brasileirinhos sem eira, nem beira, nem documento. Ninguém sabia da sua origem e ficamos num baita impasse sobre o que faríamos com o cadáver. A prefeitura colaborou: providenciou caixão e local (acho que o cemitério de Aparecidinha) para ele ser enterrado. Eu providenciei o vestuário completo: minha mulher escolheu de forma digna, toda a vestimenta.
E, a noite, fui com o engenheiro da FEM velar o defunto. Só nós dois. E aquele defunto, com roupas que tinham sido minhas, causou-me a estranha sensação de uma futura e inevitável circunstância. Depois de um tempo, acho que lá pela meia-noite, fomos tomar uma cerveja. E, depois de muito papo, combinamos um encontro lá pelas nove horas do dia seguinte, uma vez que o enterro estava marcado para às onze.
Naquele dia, um sábado, só nós dois no velório esperando pelas onze horas. Mas eis que surgem duas pessoas, amigos do defunto. Dois nordestinos que, pela “rádio peão”, ficaram sabendo do acontecido. Vieram de Diadema. Um deles tinha o endereço do falecido e ambos a dignidade das pessoas simples. Exigiram que entrássemos em contato com a família. Estávamos, a bem da verdade — eu e o engenheiro da FEM — simplesmente querendo nos livrar daquele incômodo.
Ele era de uma cidade chamada Sousa, no sertão da Paraíba. Telefonamos para um número de três dígitos e foram chamar a mãe do rapaz. Uma espera eterna e desconcertante. Coube-me falar com ela e contar a tragédia. Algo inenarrável o ouvir daquele sotaque característico, mais ainda com a dor de uma mãe que queria o filho lá.
Foi uma trabalheira danada suspender o enterro e obter autorização de um delegado para o transporte do corpo para a Paraíba. Alguns dias depois, conversei com o prefeito Flávio Chaves para fazermos uma homenagem àquele brasileirinho. Ele, com humanidade e muita sensibilidade, descartou a pomposa placa de inauguração enviada pelo Estado e autorizou a confecção de outra.
Hoje, a Praça da Bandeira, no espaço formado na conversão da Avenida General Osório com a Avenida Afonso Vergueiro, há uma singela placa de bronze com o nome de Nabor Gualberto de Medeiros. Uma simbólica homenagem de que também são merecedores tantos outros trabalhadores que, como seres incógnitos, são os que efetivamente constroem este país.
(*06/06/1946 | ➕01/7/2019)
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Professor Dal”.