Severino

Severino era porteiro do Bloco B do Crusp (Conjunto Residencial da USP) durante o período noturno, na época em que lá morei ocupando, juntamente com dois outros estudantes da Poli, o apartamento 202 do segundo andar daquele bloco. No início, morei com um estudante de Engenharia Naval e um boliviano que, sem conseguir passar do curso básico de Engenharia, o biênio fundamental, acabou sendo jubilado. Sua vaga foi ocupada por um estudante de Engenharia Elétrica.

Mas o objetivo deste papo é falar sobre o Severino. Na verdade, nem sei se era esse o nome daquele pernambucano que viveu, ou melhor, sobreviveu durante a infância numa cidadezinha do litoral do Ceará. O nome Severino adveio, talvez, do fato de ele ser jocosamente chamado de “Sivirino” pelo Samuel. Este, de ascendência judaica e estudante de Engenharia Química, era um cara muito legal que também morava no segundo andar do Bloco B.Severino não era desses porteiros que somente exercem a profissão de estar ali, como diria Fernando Pessoa. Ele enchia de alegria a recepção do nosso prédio com seu riso largo e frases criativas ditas no delicioso sotaque nordestino.

A função principal do nosso Severino era vigiar a entrada do prédio, impedindo o acesso de estranhos e pessoas do sexo feminino. Pois é. Os tempos mudaram. Naquela época havia blocos masculinos e blocos femininos. Os blocos tinham cores diferentes. Não me lembro de todas. O meu era verde. A mistura de cores que se fazia fora dos blocos é outra história.

Além da vigilância, Severino era o guardião das chaves dos apartamentos. O último a sair de um apartamento deixava com o porteiro a chave fixada a uma plaqueta em que constava o número identificador de cada apartamento. Ao ingressar no prédio, dizíamos o número ao porteiro e recebíamos a respectiva chave. Com Severino, nem era preciso dizer nada. Ele sabia qual era o apartamento de cada morador. E sempre rindo o riso franco nordestino, entregava a chave fazendo algum comentário sobre o tempo ou futebol.

Numa ocasião, depois de entregar a chave, fiquei batendo um longo papo com Severino. Ele contou-me sobre a sua vida. Viera adolescente pra São Paulo. De pau de arara e faminto. Não suportava mais comer apenas caranguejo no Ceará. Esperto, viveu de bicos em São Paulo e acabou sendo funcionário da USP. Só tinha o primário, concluído só Deus sabe como. Ou, como ele disse: “Com fé no Padre Cícero”.

Foi então que sugeri que ele fizesse o supletivo do ginásio. Ele disse que já estava num curso em Osasco, mas prestes a desistir por achar algumas matérias muito difíceis. Argumentei que na sua função de porteiro noturno sobrava-lhe tempo e havia muitas pessoas naquele ambiente que poderiam ajudá-lo. Severino pensou um pouco e, de “forma arretada”, disse-me que terminaria o curso.

Eu virei um tirador de dúvidas do Severino, sobretudo de matemática. Outros moradores, cada qual na sua área de estudo, ajudaram-no naquela empreitada.

Era um prazer ensiná-lo, tal era a sua determinação em aprender. A alegria dele quando constatava que resolvera acertadamente uma equação é indescritível. Ele adorava resolver equações do segundo grau. Quando lhe expliquei que a bala de um canhão descreve uma trajetória parabólica e que, em termos algébricos, pode ser entendida como uma curva do segundo grau, ele arregalou os olhos, saboreando o fato de que a matemática pode descrever fenômenos reais. Desde então, comecei a dar exemplos aplicativos da teoria que ele estudava. Foi uma festa. Pra ele e pra mim.

Seu empenho nos estudos era tanto que ele começou a implicar com os que de forma autoritária pediam ou entregavam as chaves. E resmungava: “Esse jerimum enfezado mora no quarto andar”. Para cada passante ele tinha um comentário, sempre utilizando jerimum como designativo. Às vezes de forma ferina: “Acho que esse jerimum não toma banho”. Quando eu disse que pra nós jerimum era abóbora, ele caiu na gargalhada e não conseguia pronunciar o termo sulista para esse fruto.

No seu mundo de jerimuns, Severino conseguiu obter o certificado de conclusão e aprovação no supletivo.

Uma noite, na volta do colégio em que eu lecionava, chamou-me sorrindo: “Jerimum, veja isto!” Mostrou-me seu certificado como se fosse um diploma de mestrado em Harvard. Com os olhos marejados agradeceu-me e ficamos de comemorar com umas cervejinhas.

Não foi possível a comemoração. Os moradores do Crusp (eu incluso) foram expulsos pela ditadura militar. Sorte que a generosa diretoria da Casa do Politécnico abrigou muitos “politecos” sem teto (eu incluso).

Nunca mais soube do Severino. Inteligente que era, deve ter progredido muito.

Ao longo da minha vida constatei que o nosso país é repleto de jerimuns adoráveis. Como o dócil e bem-humorado “Sivirino”.

 

Adalberto Nascimento
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal aposentado, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras, colaborava semanalmente com este site nos espaços Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal

[Artigo publicado originalmente pelo Jornal Cruzeiro do Sul em 25 de março de 2013]

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