Coluna do Dal

Bassu

Quando eu era adolescente, meu pai sempre comentava que havia um negro no Mercado Municipal que falava japonês. Esse fato ficou martelando na minha cabeça e só veio a ser esclarecido em São Paulo por um calouro “japonês” sorocabano que, como eu, foi morador da Casa do Politécnico.

Trata-se do Francisco Moko Yabiku, que, por coincidência, veio morar no apartamento 33, vizinho ao meu (34), ambos do terceiro andar daquela república. Foi ele quem me contou que, na verdade, aquele negro falava um dos dialetos de Okinawa. Há dois dialetos principais nessa ilha pertencente ao Japão: okinawano central e okinawano meridional. Depois do japonês, o okinawano é o mais falado dos idiomas nipônicos.

O Japão é um arquipélago, sendo que suas maiores ilhas são Hokkaido, Honshu (a mais populosa), Shikoku e Kyushu. Okinawa, “o Caribe do Japão”, é um subconjunto de ilhas (arquipélago Ryukyu), a sudoeste das ilhas principais e a meio caminho entre o restante do território japonês e a China. Daí o fato de a cultura e a língua dos seus habitantes terem sido fortemente influenciadas pelo continente asiático.

Okinawa, antes um reino independente (e também terra do karatê, que quer dizer “mãos vazias”), foi incorporada ao Japão como província em 1879. E depois da Segunda Guerra ficou sob jurisdição norte-americana, retornando ao Japão somente em 1972. É por isso que nos meus tempos de faculdade alguns estudantes de origem japonesa se referiam a um okinawano, em tom de brincadeira, como “American Japanese”. Eu, na ocasião, achava que isso acontecia somente por existir uma base americana naquela ilha.

No dia 18 de junho de 1908 ocorreu a chegada ao nosso país da primeira leva oficial de imigrantes japoneses. O navio Kasato Maru aportou em Santos, trazendo 781 trabalhadores contratados e doze livres. Do total de 793 japoneses, 324 eram procedentes de Okinawa (cerca de 40%). Atarracados, de pele mais escura, homens de barba cerrada e todos falando uma língua indecifrável. Estranhos para os brasileiros e para os demais japoneses.

Em 1917, o navio Wakasa Maru trouxe mais uma leva de imigrantes japoneses, boa parte deles provenientes de Okinawa, incluindo a família do Yabiku.

Depois de muito sofrimento, acabaram fixando-se em Sorocaba. O Paulo Yabiku, irmão mais velho do Moko, contou-me que, depois de umas peripécias, eles foram abrigados por um período pelo meu avô José Hannickel em seu sítio, localizado no bairro do Caguaçu.

O mundo é pequeno. Tornei-me um amigo fraterno do Yabiku e jogamos na Seleção do Terceiro Andar, que, em 1971, foi a campeã do acirrado torneio inter-andares (eram sete) de futebol de salão da Casa do Politécnico.

Muita gente acha estranha certa dificuldade que o Yabiku tem ao discursar. Isolado num sítio com falantes okinawanos lacônicos, não foi fácil a sua adaptação à língua portuguesa. Ele é curto e grosso. Direto como um tiro. E isso é bom, pois, como dizia Leibnitz, filósofo e matemático alemão: “A riqueza de vocabulário quase sempre encobre a pobreza de pensamento”.

Para exemplificar o jeitão dele: certa ocasião fui por ele convidado para um churrasco. Indisposto, liguei engendrando uma desculpa esfarrapada: “Yabiku, não poderei ir ao churrasco porque…”. Não deu tempo. Ele respondeu: “Tudo bem”, e desligou o telefone.

A generosidade do Yabiku está em seu DNA. Sua família, com um montão de filhos, doze ao todo, adotou uma criança negra que fora abandonada e também criou um japonesinho (Pedro Gohara, um não okinawano) portador de deficiência mental. Este terminou seus dias no Asilo dos Vicentinos, sempre amparado pelo Moko.

O negro acabou sendo ferroviário; casou-se, tornou-se pai de dois filhos; ficou viúvo, casou-se novamente, tornando-se pai de mais três filhas. Pelo que conta o Yabiku, o Bassu – apelido de Cipriano Laureano do Rosário (1919-1983) -, só trouxe alegria à sua família. Além de falar, cantava em okinawano tocando shamisen (uma espécie de guitarra okinawana de três cordas). Trouxe aos amarelos a alegria dos negros.

Por volta de 1980, o Yabiku foi com alguns parentes visitar o Bassu. Foram atendidos por uma jovem negra que gritou pra mãe: “A família do pai está aqui”. E, de forma educada, “a família” foi recebida.

Os japoneses sempre deram muita atenção à educação. Para ilustrar esse fato, sabe-se que, em 1938, quando Getúlio Vargas proibiu escolas estrangeiras em nosso país, havia em São Paulo 8 escolas italianas, 20 escolas alemãs e nada menos que 294 escolas japonesas.

Além das escolas, muitas associações nipônicas foram fundadas. No início eram separadas – japonesas e okinawanas. Em nossa cidade, temos a Ucens, União Cultural e Esportiva Nipo-Brasileira de Sorocaba, que desde a sua fundação agregou japoneses e okinawanos. E, suponho, até bassus brasileiros.

 

Adalberto Nascimento
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal aposentado, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.

Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras, colaborava semanalmente com este site nos espaços Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal

[Artigo publicado originalmente pelo Jornal Cruzeiro do Sul em 6 de janeiro de 2013]

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