Brincando com a língua

Coluna do Dal

Brincando com a língua

No início de 1960, um grupo de escritores europeus, liderados por franceses, iniciou experimentos misturando literatura com matemática. Esse grupo foi denominado Oulipo, que vem a ser uma espécie de acrônimo de Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial). Um dos seus fundadores, Raymond Queneau (foto), dez um livro de dez folhas com um soneto em cada folha (um soneto é composto de dois quartetos e dois tercetos, tendo portanto, 14 versos, ou 14 linhas).
A originalidade do livro de Queneau consistiu no fato de que as linhas vinham cortadas, permitindo, por exemplo, que a primeira linha da primeira folha se associasse às múltiplas combinações possíveis com as demais linhas das folhas seguintes. Dessa forma, aquele livrinho permitia a composição do número igual ao “10 elevado ao expoente 14” de sonetos que, segundo afirmava o autor, rimariam e fariam sentido. Resta acreditar, pois é humanamente impossível conferir a veracidade da afirmação, uma vez que aquele número corresponde a 100 trilhões de sonetos. E esse número monstruoso de possibilidades é bastante claro para quem aprendeu análise combinatória. Para quem tem fobia de matemática, só resta ter fé de que isso seja verdade.
Outro trabalho oulipiano, La Disparition (“O desaparecimento”), de Georges Perec, consistiu num livro de 300 páginas no qual não aparece nenhuma letra e, a não ser, ironicamente, as quatro integrantes do nome do autor. Ensaios sobre lipogramas, escritos no qual se omitem letras, foram feitos por escritores famosos: François Rabelais, Lewis Carroll (matemático e autor de “Alice no País das Maravilhas”), James Joyce, Jorge Luis Borges e Ítalo Calvino (que era membro da Oulipo).
Entretanto, a prática de lipogramas remonta à Antiguidade. Consta que um dos primeiros mestres nessa técnica foi o poeta Trifiodoro. No século V, a.C., ele escreveu um poema épico em vinte e quatro livros, prescindindo em cada um de uma letra do alfabeto grego vigente na época. Já no século XVII, o escritor espanhol Alonso de Alcalá y Herrera escreveu cinco novelas, que em cada uma das quais falta uma vogal do castelhano. Outros autores barrocos da mesma época usavam também ocultações de letras por estarem envolvidos com o ocultismo, com a cabala e com a numerologia.
Em 1915, o filólogo baiano Antonio Sá proferiu um longo discurso em sua posse no Instituto Histórico da Bahia no qual não utilizou a letra a. Três anos mais tarde voltou à tribuna para fazer um discurso sem usar um verbo sequer. Nós, os caipiras, provavelmente por influência dos imigrantes italianos, adotamos no falar o lipograma do s do plural de muitas palavras, pois em italiano não se usa o s para o plural; como regra geral, o plural masculino se faz com i, e o feminino com e.
E “vamo que vamo”… Não deixa de ser algo delicioso ouvir as músicas de Adoniran Barbosa (pseudônimo de João Rubinato) em que esse fato é explorado de maneira peculiar e bem-humorada. Suponho que em cada língua ocorram dificuldades específicas para se fazer lipogramas. O da letra e em inglês deve ser dificílimo, pois estudos de criptografia constataram que essa é a letra mais recorrente na língua de Shakespeare. Não tenho conhecimento de qual ela seria em português. Talvez seja também o e; todavia, qualquer lipograma de vogal de ser uma tarefa insana.
O leitor interessado poderia tentar escrever um texto com 15 linhas, digamos, fazendo um lipograma do o, por exemplo. Verá que não é coisa fácil. Já o leitor mais exigente e pessoas que somente se interessam por coisas utilitárias (esses provavelmente não chegaram a este ponto do texto) podem questionar a relevância deste assunto.
É comum o tal individuo utilitário se fazer presente quando, por exemplo, ao comentarmos sobre a origem etimológica de uma palavra, manifesta-se de forma irônica: “Não sei como vivi até agora sem saber disso”. Como se tudo que não seja prático faça parte da tal “cultura inútil” — expressão essa muito usada, em geral, por desprovidos de cultura alguma.
Tenho a convicção de que o prazer por determinados assuntos “não utilitário” é muito mais gratificante do que, por exemplo, ficar nas tardes de domingo assistindo aos “cretinadores” de plantão, conforme genial definição de Millôr Fernandes para os midiáticos fazedores de excrescências e dos quais somos vítimas não somente aos domingos. Pior ainda, em época pré-eleitoral, são esses “horários obrigatórios de cretinização”.
Enfim, voltando ao busílis do assunto, brincar com as palavras tem também importante função paradidática. Ao tentar fazer um texto como o proposto anteriormente, o aluno teria de ampliar o seu vocabulário, criar construções gramaticais interessantes, o que estimularia sua criatividade, entre outras coisas. E para os senescentes, como exercício cerebral, fazer lipogramas pode ser uma forma interessante de, brincando com a língua, manter distante aquele famosos médico alemão — o tal “Doktor Alzheimer”.

 

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

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