Cérebro cheio de dedos

Escola de datilografia… Quem se lembra? Eu até tenho diploma. Eu e minhas irmãs. Estava dentre as exigências dos nossos pais, além do colégio e do curso de inglês. “Nunca se sabe sobre o futuro…”. Era, conforme o poeta português Antônio Nobre, uma voz que doía, mas ensinava. ASDFG… ÇLKJH… E assim ia… Máquinas pesadas, duras e que deixavam nossos dedos doloridos tal era a pressão necessária para a escrita ficar legível. Era uma escrita que doía, mas ensinava. E ensinou-me. Hoje curto a maciez de um teclado de computador, só me voltando a ele em olhadelas para acentos e sinais gráficos. Ganho tempo. Não fico como galinha catando milho.
No entanto, segundo o escritor Luiz Fernando Veríssimo, no futuro o ser humano terá apenas três dedos em cada mão: o polegar, por ser imprescindível para o efeito pinça; um enorme e fino indicador, pra fazer funcionar aparelhos digitais; e o mindinho. Este somente pra limpar orelha, é claro. Todavia, como veremos, o uso de todos os dedos faz bem ao cérebro.
Como curiosidade, aprendemos a datilografar com todos os dedos usando um teclado construído para a língua inglesa. A disposição das teclas levou em consideração as letras mais utilizadas pelos gringos, separadas em metades opostas do teclado para evitar o “encavalamento”, muito frente nas máquinas primitivas. É a chamada disposição QWERTY – as letras iniciais da linha superior de letras do teclado. Essa história de que é assim por ser o nome ou sobrenome do inventor é mais uma dessas lendas que rodam a internet.
Foi usando os dedos que o ser humano começou o processo de enumeração — início das contagens — e que deu origem ao nosso sistema decimal, por termos dez dedos nas mãos. Hoje é sabido que, durante as atividades concernentes à linguagem, fazemos uso do lobo frontal do cérebro. O cérebro possui lobos que não uivam: frontal, parietal (direito e esquerdo), occipital e temporal. No cérebro há muito mais coisas que, juntamente com aquela alcateia, trabalham o tempo todo. A história de que utilizamos somente 10% do cérebro é outra lenda. Foi criada por autores norte-americanos desses enfadonhos livros de autoajuda para, digamos, aumentar o poder da mente e o poder do bolso (deles).
Dava, com aquela baixa utilização, pra enfiar um monte de bobagens nos 90% restantes. O tal Dale Cornegie ficou cheio da grana com esse papo. Muita gente também fica rica vendendo papo furado. Tudo isso porque, para a felicidade de embusteiros, existem muitos cérebros novos, como que saídos de fábrica — com 0% de uso.
O lobo frontal, que mencionamos, é o centro da linguagem no cérebro. Entrementes (sem trocadilho), quando fazemos cálculos aritméticos, estudos de laboratórios demonstram que a atividade cerebral mais intensa ocorre no lobo parietal esquerdo. Sucede que é essa a região do cérebro que também controla os dedos. Daí a importância da atividade digital (com os dedos), que pode ser feita em instrumentos musicais, na digitação e em tarefas atinentes, como excelente exercício cerebral.
Crianças pequenas e até alguns adultos fazem cálculos aritméticos simples usando os dedos. Em geral, pessoas adultas dispensam os dedos porque, depois de um longo período evolutivo, o ser humano aprendeu a “desconectar” os dedos e fazer contagens sem usá-los, apenas ativando aquela região do cérebro (o lobo parietal esquerdo).
Através de experiências em laboratórios, neurologistas encontraram estreitas ligações entre o controle dos dedos e a habilidade numérica. Pessoas que sofrem lesões no lobo parietal esquerdo ficam com deficiências na percepção de sensações relacionadas aos dedos e enormes dificuldades de lidar com números. Esse problema é denominado síndrome de Gerstmann, conforme mania dos médicos em rotular a doença com o nome do descobridor.
A leitura de livros sobre esse assunto deixou-me encafifado. E comecei a perceber que, volta e meia, quando não tenho certeza se, por exemplo, uma palavra é com s ou com z, recorro aos meus dedos. Isso mesmo, digito mentalmente num teclado virtual. Se der no anelar esquerdo, é com s. Se der no mindinho esquerdo, é com z. Isso, além de demonstrar que, obviamente, os neurocientistas estão no caminho certo, causa-me uma certa perplexidade. Serei eu portador de alguma síndrome? Claro que sou. De várias. Todo mundo é, pelo menos, portador da “síndrome de si mesmo”.
No meu caso, como meu hipocorístico (nome familiar carinhoso) é Dal, brinco com a minha esposa e filhas, dizendo que elas têm de suportar minhas idiossincrasias por eu ser portador da “síndrome de Dal”. Talvez faça parte dessa síndrome o cérebro cheio de dedos. Não por frescura, mas por amor à matemática.

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

 

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