Do café com rosca

Quando Lima Barreto, em 1911, publicou, na Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro, o conto “O homem que sabia javanês”, jamais poderia imaginar que, quase 100 anos depois, a linguagem dominada Java seria uma coqueluche no mundo digital. No conto de Lima Barreto, um malandro finge saber javanês, é contratado por um barão, fica famoso como sendo um dos únicos tradutores desse idioma, passa por alguns apertos, mas acaba como cônsul em Havana. Coisas deste país…
Java, em informática, é a designação de uma linguagem  de programação computacional desenvolvida pela Sun Microsystems. Sun, que em inglês significa sol, é o acrônimo de Sanford University Network. Três nerds americanos deram denominação à linguagem por vararem noites turbinados pelo alto consumo de café da marca Java. Tanto é assim que o logotipo que eles adotaram para a tal linguagem é uma xicarazinha esfumaceando café quente.
Tudo isso começou com o fato de os holandeses terem roubado mudas do café dos árabes para plantá-las na ilha de Java, que nos tempos coloniais foi o principal território dos domínios da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Atualmente, Java é a ilha mais povoada do mundo, faz parte da Indonésia e abriga a capital desse país — a cidade de Jacarta.
Essas digressõe javanesas fizeram-me lembrar dos tempos de faculdade, especialmente da época em que morei na Casa do Politécnico, até hoje carinhosamente apelidada pelos ex-moradores de Cadopô. A Casa do Politécnico foi construída, de 1951 a 1956, por iniciativa de antigos alunos, quando a Poli funcionava integralmente onde hoje é a Fatec, em São Paulo. O saudoso amigo engenheiro Lourival Maffei foi um dos membros da comissão de construção, e consta que o prédio de oito andares foi projetado pelo famoso arquiteto Vilanova Artigas.
A Cadopô, em local adjacente à antiga Poli, foi construída com a finalidade de servir de moradia aos estudantes de condições financeiras limitadas. Essa saudosa república era um prédio, hoje interditado, que abrigava cerca de 110 alunos. Foi o lugar em que tive de morar após a ditadura ter expulsado os estudantes (eu incluso), em 1968, do Conjunto Residencial da USP — o famoso Crusp.
Os apartamentos, na verdade quartos, foram, em geral, projetados para abrigar três pessoas. Três camas, três pranchetas e um armário com três divisões. Tudo muito simples e funcional. Sempre morei no 34 e, nos últimos tempos de faculdade, com dois amigos também do interior de São Paulo: o Mário Imura (Marinho), de Mogi das Cruzes, e o Levi Fernandes Seabra, de Salto de Pirapora. Eu e o Marinho cursávamos Engenharia Civil; o Levi, Engenharia de Produção.
No mês de agosto e no final do ano, a Cadopô ficava todinha iluminada durante noites e madrugadas. Parecia decoração de Natal. Nesses períodos, o consumo de café era elevadíssimo. Explicarei o porquê disso tudo.
Em geral, tínhamos, para cada disciplina, duas provas por semestre, com direito a não fazer uma delas, deixando-a para agosto ou para o final do ano. Eram as famigeradas provas substitutivas. Nessas provas, as matérias a serem estudadas correspondiam ao que fora lecionado no semestre todo. Uma pedreira. Todo ano jurávamos “não deixar nenhum pra sub”. E todo ano tínhamos um montão de substitutivas pra fazer. Um inferno. A Cadopô praticamente toda iluminada — e haja café. Os botecos da redondeza aumentavam o faturamento servindo aqueles horrorosos cafezinhos em copinhos de pinga, não sem antes emborcá-los em água fervente à guisa de desinfecção — como se a higiene fosse algo natural nos botecos daquela época. Nem hoje é.
Numa ocasião, eu e o Marinho varamos a noite estudando Resistência dos Materiais. Lá pelas cinco da manhã resolvemos tomar café e também comer alguma coisa porque os roncos dos nossos estômagos já estavam superando, em muitos decibéis, os roncos em sono profundo do Levi. Descemos em busca de algum boteco aberto. Perambulamos pelo Bom Retiro e nada. Tudo fechado. Depois, em sentido oposto, acabamos achando uma espelunca aberta na Avenida Tiradentes. Ao entrarmos naquela birosca, já deu pra perceber que o local não primava pela higiene. Pedimos café. Um horror — parecia feito de fuligem. Marinho pediu um pão na chapa. Eu, ao olhar aquela chapa encardida, relutei. Olhei no balcão e pedi uma rosca que estava acondicionada num tudo plástico cilíndrico. Pensei comigo: deve ser industrializada e menos suscetível às imundices. Além disso, por ainda conter várias, as roscas deveriam ser recentes.
Quando estávamos de saída, apareceu um fulano de bicicleta, na qual havia uma cestinha com tubos de roscas. Ele entrou com um tubo novo. Pegou aquele que estava no balcão e simplesmente jogou no lixo. Marinho caiu na gargalhada e eu fiquei com vontade de largar tudo pra estudar javanês. Java não seria possível. Nem internet existia.

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

 

Notícias Relacionadas

Deixar uma resposta