Um árabe do Cairo tinha sido um comerciante muito rico. Por causa dessas contingências inesperadas da vida (vide a atual crise financeira), ele perdeu quase tudo. Só lhe restou a casa que fora do seu pai. Dignamente, voltou a trabalhar duramente. Ao final de um dia, de tanto trabalhar, deitou para descansar sob uma figueira do jardim da casa. Acabou dormindo e sonhando. No sonho, um homem gordo tirava uma moeda de ouro da boca e dizia: “Tua fortuna está na Pérsia, em Isfahan”.
Ao despertar, o tal árabe resolveu ir a Isfahan. Depois de uma viagem exaustiva, lá chegou quando já era noite. Não conhecendo a cidade, foi dormir no pátio de uma mesquita. Sucede que uns bandidos entraram numa casa vizinha e foram descobertos pelos moradores. Começou uma enorme gritaria — parece que as mulheres persas (e árabes) são pródigas em gritarias.
Com todo aquele berreiro, os bandidos deram no pé, mas para o cairota a coisa ficou preta. A polícia chegou e depois de uma inspeção geral, foi averiguar a mesquita. Não deu outra: o árabe, coitado, foi considerado um integrante da quadrilha e, depois de muita porrada, foi preso. Só recobrou os sentidos dois dias depois.
Para explicar sua situação, contou o mirabolante sonho ao capitão, responsável pelo presídio. Este tirou um sarro do árabe, dizendo que ele próprio, sem praticar o mesmo desatino, também já havia sonhado três vezes com um tesouro enterrado junto a uma figueira existente numa casa da cidade do Cairo. Rindo, mas penalizado pela ingenuidade do árabe, deu-lhe algum dinheiro para a viagem de retorno. De volta ao Cairo, o sofrido árabe desenterrou o tesouro que estava no sonho do capitão persa.
Essa é uma síntese temperada de um conto de “As mil e uma noites”, bem mais enxuta do que a li, reproduzida numa obra de Jorge Luis Borges (História universal da infâmia). Obra essa que acabei relendo por causa de leitura recente de um conto integrante de “O circulo dos mentirosos”, de Jean-Claude Carrière, é um conto judaico muito semelhante ao do árabe que acabei de contar. Quis, portanto, compará-los. Mas, como não sou organizado, foi-me muito difícil achar o livro do Borges. Na verdade, ele apareceu, como um sonho, numa dessas mexidas em livros desorganizados.
No conto judaico, um velho rabino chamado Eisik, filho de Jekel, morava na Cracóvia (terra do falecido Papa João Paulo II) e vivia sonhando que havia um tesouro em Praga, sob uma ponte que levava ao castelo do rei.
Depois de muito relutar, o rabino foi a Praga e ficou zanzando nas proximidades da tal ponte, diuturnamente vigiada por rígidos sentinelas. Acabou que um deles abordou rispidamente o judeu, e este, ingenuamente, contou sua história. O tal sentinela, tal qual o capitão do conto árabe, riu a valer. Riu e disse: eu também sonho que há um tesouro na casa de um rabino, um certo Eisik, que mora na Cracóvia. Filho de Jekel? — perguntou o rabino. Você o conhece? — perguntou o sentinela.
Nesse conto judaico, de origem polonesa, o final fica por conta do leitor.
E, do mesmo livro no qual li esse conto, apresento uma adaptação de uma outra história em, digamos, uma piadinha, que aos meus amigos judeus digo como sendo piada sobre árabe e vice-versa. Faço isso porque tenho vários amigos dessas duas etnias. Muitos deles, felizmente, são amigos entre si. O nosso país é especial. Tão especial que fiquei sabendo da existência de um pai de santo judeu, muito requisitado pela comunidade judaica de São Paulo. Ou seja, aqui árabes (que chamamos de turcos) e judeus viram todos os brasileiros e amantes do futebol.
Vamos, pois, à piadinha árabe-judaica. Durante um sonho de um turco (ou judeu) apareceu um desconhecido que sem explicação alguma, dava-lhe nove moedas de prata. Mas por que nove? Porque não dez, para um número redondo? — retrucava o sonhador. Mas o desconhecido, meio árabe, meio judeu, dizia: só nove. Essa discussão durou uma eternidade. Nos sonhos, o tempo é muito mais relativo do que Einstei poderia imaginar. E a coisa foi ficando tão estremecida que o sonhador acordou com uma das mãos cerrada e muito dolorida. Ao abri-la, percebeu que se tratava de um sonho, pois não portava moeda alguma. Nosso amigo, então, seja árabe ou judeu, não teve dúvida. Fechou os olhos para dormir de novo murmurando: está bem, concordo com as nove moedas.
Enfim, com ou sem piadas, como seria bom se naquela região conflitante do Oriente Médio judeus e árabes tivessem sonhos trocados. Uns desejando a felicidade dos outros. E concordando com as respectivas “moedas”, sem brigas por sonhos inatingíveis que, na verdade, somente interessam aos vendedores de armamentos.
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.