No meio da década de 1960 assisti a um filme particularmente maravilhoso. Era um filme tcheco que, se não me engano, foi exibido num daqueles cinemas de arte que havia em São Paulo. Talvez tenha sido no Cine Bijou, uma pequena sala de projeções que existiu na Praça Roosevelt e que também foi palco para outros belos filmes daquele tempo. Talvez tenha sido lá também que curti outro excelente filme tcheco: “Trens estritamente vigiados”.
O fato de, naquela época, vivermos em plena ditadura tornava mais emocionante assistir as produções de países da chamada cortina de ferro. E, embora sem conotação política alguma, “Um dia, um gato” é um filme mágico que mexeu com muita gente da minha geração. Tanto isso é verdade que, ainda hoje, falo dele para as minhas filhas. Elas, talvez, já me ouçam como aquele “senhor” repetitivo, detentor da exclusividade de ter convivido com coisas das mais belas que já aconteceram: filmes, músicas, futebol, etc… E não haverá um pouco de verdade nisso tudo? Vejam só: vi, “ao vivo e in loco”, o Pelé e o Garrincha jogarem partidas antológicas. Curti, digamos, “em tempo real”, o auge da MPB, da bossa-nova e dos Beatles. Além disso, participei de inúmeras passeatas pra gritar “abaixo a ditadura”, nas quais, em geral, terminávamos como atletas correndo da polícia e daqueles brutamontes do Dops, que, gordos e cheios de correntes com medalhões, sempre ficavam na rabeira.
Enfim, tínhamos sonhos não mais sonhados; quixotescos, porém sinceros, e por um Brasil mais justo. Vivemos durante a fase em que o cinema era realmente “sétima arte”, com filmes inesquecíveis — italianos, franceses, japoneses, tchecos e tantos outros. Até americanos. E, além de tudo isso, íamos ao Bar Sem Nome, na rua Dr. Villa Nova, do qual Chico Buarque era assíduo frequentador. Precisa mais? Ah, havia também aqueles festivais da Record… Quem se lembra?
De volta ao Cine Bijou. “Um dia, um gato”, conta a história de uma espécie de circo mambembe que chega a uma pequena cidade da Tchecoslovaquia. Dentre as apresentações daquela companhia destacam-se as de um mágico e a de um gato que usa óculos. Aquele gato tinha poderes especiais: quando lhe tiravam os óculos, as pessoas para quem ele olhava mudavam de cor. Os mentirosos ficavam roxos; os ladrões, cor de cinza; as pessoas falsas, amarelas; e as apaixonadas vermelhas.
Diante daquelas revelações, as pessoas da platéia do circo fogem, e, na confusão, o gato desaparece. Um jovem professor pede ajuda às crianças da cidade para encontrar o animal. As crianças queriam encontrá-lo. Os adultos também, mas, em sua maioria, para matá-lo.
O simbolismo desse filme é fantástico. Num dado momento, alguém atira e mata o que pensa ser o gato. Mas era um gato falso, de porcelana — a verdade não morre. O filme também evidencia, de forma muito peculiar, a pureza inerente à infância. Por falar nisso, lembro-me com enorme carinho de um fato acontecido com minha filha primogênita, pouco tempo depois de ela ter sido alfabetizada. Como sou exagerado, comprei a coleção completa de Monteiro Lobato e umas tantas montanhas de livros de histórias para crianças. Sucede que, pouco depois dessas aquisições, veio-nos visitar uma tia querida, a tia Daisy Hannickel, que é médica (da turma do Dr. Edgard Steffen).
Como ele bem sabe, ela sempre teve um jeito especial de ser. E, tendo escolhido um livro, foi ao quintal ler uma história para minha filha. Minha tia, na verdade, mais do que lia: interpretava. A minha filhinha, com seus esvoaçantes cabelinhos ruivos, entrou correndo pra dizer-me: “Pai, ela tem a voz do livro!”. Sempre que me lembro desse episódio ele me vem associado com “Um dia, um gato” e, por isso, sinto um prazer delicioso quando isso acontece.
Como seria interessante se gatos com aquele poder realmente existissem. Imaginem um deles lá em Brasilia. O espectro seria tão grande que precisaríamos de uma tabela para a correspondência de cores. O gato, coitado, talvez endoidasse, face à multiplicidade de camaleões. E, sem dúvida, as transmissões em cores seriam proibidas. Para manutenção da ordem pública, é obvio.
Com os nossos atuais políticos no Congresso, cuja maioria é podre, acho impossível uma reforma política séria neste país. Dizem, por exemplo que o nepotismo foi proibido, mas um senador pode ter como suplente “qualquer um”. Quando elegemos um senador, o suplente vem acoplado. É “o dois em um” de mais uma safadeza. E, assim, um lobinho pode substituir um lobão!. Dá pra acreditar? Pois é, na verdade temos material de sobra para um filme: não de arte, como o tcheco, mas um primeiro de uma enorme série sobre rapinagens, e que poderia se chamar “Uma noite, um rato”.
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.