Cuca de japa

Coluna do Dal

Cuca de japa

O cérebro humano pode, na realidade, ser considerado como dois cérebros: hemisfério direito e esquerdo, mais ou menos parecidos e interligados por uma ponte de fibras nervosas denominada corpo caloso. Talvez por essa razão (chute meu) a tal “falta de parafuso” seja a ausência dessa conexão. Esse papo sobre o cérebro não faz parte da minha praia (nem em Mongaguá). Talvez seja muita presunção. Não obstante, ouso, embora tangencialmente, enveredar nesse tema por causa das minhas leituras e, sobretudo, para prestar uma singela homenagem aos meus amigos nipônicos. Ou “nikkeis”, termo atualmente em moda para designar japoneses e seus descendentes.

Em Sorocaba, nos tempos do Estadão, tive alguns “nipo-amigos”, porque eram mesmo poucos. Foi só na Faculdade que os time de montão. Eram muitos na Escola Politécnica. E, nos tempos da Cidade Universitária, costumávamos dizer que eles “andavam em cardumes”. Todos juntinhos, como sacerdotes circunspectos no cumprimento de missões para não decepcionar as ânsias e os desejos paternos. Pensando naqueles tempos, me veio um episódio marcante em que me lembro, com muitas nitidez, do carinho com que uma japonesinha passava um creme ou pomada no rosto todo cheio de berebas de um alemão, seu namorado. Suponho, hoje, que se tratava de uma espécie de psoríase. E, sob a sombra de uma árvore naquele imenso gramado ensolarado, ela o fazia de uma forma tão meiga que me faz lembrar do Fernando Pessoa: “Ó tocadora de harpa, se eu beijasse o teu gesto sem beijar tuas mãos…”. O gesto dela, mais do que a pomada, é que aliviava as feridas do alemão.

E também me recordo dos japas, como sempre cheios de brio e retidão. Certa vez, eu e o Benedetto, um colega italiano — desses com coração do tamanho de pizza –, ficamos uma noite inteira convencendo o Maeda de que ficar numa segunda-época não era um motivo plausível para suicídio. Como ele explicaria aquela falha escolar em casa? Enfim, depois de muita conversa, sobreviveu. E desse baú de saudades orientais me veio à lembrança um episódio tenebroso, muito arriscado naqueles tempos de ditadura. Fui com o teimoso Mitsuhiro (japonês atarracado e campeão de beisebol) ao quartel de Quitaúna (que ousadia!) para reclamarmos do sumiço da sua máquina fotográfica Nikon. Uma preciosidade que provavelmente foi garfada durante a expulsão dos estudantes, nós inclusos, do Conjunto Residencial da USP. Inusitadamente, um general nos atendeu, mas com toda aquela prepotência verde-oliva de então. E, possivelmente, julgando-nos comunistas, vociferou: “Guerra é guerra, japonês, e vocês perderam”.

De tudo isso me restou o privilégio de ter muitos amigos oriundos da terra do sol nascente. Tetsuo (Thê), Yabiku, Fumio, Imura, Hideo, Kuka, Hiromi, Sakoda (in memorian)… E amigas: Sumie, Mitiko, Akikuko, Kiko, Patrizia, Isaurinha (in memorian)… E muitos Mários e Jorges (nomes recorrentes porque facilmente pronunciáveis por japoneses). Pessoas dignas, briosas, de caráter e para as quais vale a frase “Não importa o que você tem na vida, mas quem você tem na vida”.

Voltando ao nosso papo inicial, o hemisfério direito do cérebro comanda as atividades motoras e sensoriais do lado esquerdo do corpo, e o hemisfério esquerdo as do lado direito. É provável que os ambidestros tenham componentes semelhantes nos dois lados. E também talvez por causa disso os canhotos forçados a escrever com a mão direita fiquem gagos. Esses fatos decorrem de funções dominantes em cada um dos hemisférios do cérebro. O hemisfério esquerdo é responsável pelas atividades relacionadas à linguagem (falada ou escrita), enquanto que o hemisfério direito gerencia a construção de imagens visuais e espaciais.

O corpo caloso é que  promove a integração de palavras com imagens. E essa integração é que é, de certa forma, “sui generis” para os japoneses. Uma explicação disso, segundo os especialistas, decorre de ele terem dois sistemas de escrita: o kana (hirograma e katakana), silábico, fonético, semelhante à nossa escrita alfabética; e o kanji, herdado dos chineses, formado por símbolos que representam ideias. Dessa forma, os japoneses processam, tanto na fala como na escrita, os dois hemisférios, enquanto que nós, ocidentais, usamos para aquelas funções quase que exclusivamente o hemisfério esquerdo.

Isso pode ser parte da explicação sobre a versatilidade de um japonês comum. Além de sua capacidade e disciplina, é mais frequente que os japoneses, na maturidade, apresentem dotes artísticos, como cantar (vide o sucesso do karaokê), fazer poesia, desenhar, pintar e apreciar sutilezas sonoras. Ainda bem que recebemos um enorme contingente desses migrantes orientais. Hoje, citando Lima Barreto, eles também fazem parte “dessa comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro”.

 

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

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