Coluna do Dal

Do mensageiro das estrelas

Há 400 anos, Galileu Galilei subiu na torre de San Marco, em Veneza, acompanhado do doge Leonardo Dona e sua comitiva. Lá no topo, ‘o primeiro cientista’ firmou numa plataforma seu telescópio, apontando-o a para Pádua. Assim, o doge de Veneza, maravilhado, pôde ver, a mais de 50 quilômetros, a torre de Santa Giustina.

Esse evento só foi possível graças à genialidade de Galileu e ao desempenho de seu amigo Paolo Sarpi. Este era uma espécie de primeiro-ministro do doge, magistrado de Veneza com poder quase absoluto. Quase, pois quem efetivamente dava as cartas era o amigo de Galileu. Paolo Sarpi (1552-1623) – clérigo culto e antipapa – era odiado pelo Vaticano.

Para a fúria do então papa Paulo V, Sarpi declarara que o ‘Index Librorum Prohibitorum’ (Índice dos Livros Proibidos) era o primeiro mecanismo secreto que a religião inventou para tornar os homens idiotas. O papa, irado, excomungou todo o governo de Veneza. Mesmo assim, aquela república liberal continuou não dando bola ao Vaticano, e consta que Paulo V, utilizando métodos pouco ortodoxos, tramou para que Sarpi fosse assassinado.

Atacados por cinco brutamontes, os dois acompanhantes de Sarpi morreram. Este, por sua vez, sofreu quinze punhaladas, sendo que um dos estiletes penetrou por sua orelha esquerda e saiu pela bochecha direita. Todavia, Sarpi, por ser mais duro de roer do que beira de sino, conseguiu sobreviver. Assim, em 1609, dois anos após sua quase-morte, pôde ajudar Galileu.

Galileu não foi o criador do telescópio (que ele chamou de ‘cannocchiale’). O italiano, na verdade, aperfeiçoou uma luneta inventada e patenteada, em 1608, pelo holandês Hanz Lippershey.

Sabedor de que o holandês chegara a Pádua para mostrar a luneta aos padres de lá, Galileu se mandou pra Veneza (que detinha o poder sobre Pádua) e pediu a intercessão de Sarpi para o bloqueio de uma possível reunião de Lippershey com o doge. E Sarpi, atendendo ao amigo, enrolou o holandês, como fazem certas secretárias de alguns ‘poderosos’ que se julgam imortais. Hoje seria algo como, depois de um tempinho, o manjado papo: ‘Ele acabou de sair, mas eu poderei estar agendando…’.

Chapeladas desse tipo serviram para Galileu estudar a luneta do holandês e, em tempo exíguo, fabricar o seu telescópio. A despeito dessa malandragem, a luneta de Galileu resultou melhor, mais nítida e mais potente do que a do holandês. O italiano de Pisa era fera (se possível, falaremos mais sobre Galileu em outras oportunidades).

Embora objetos transparentes, côncavos ou convexos que diminuíam ou aumentavam a visão das coisas fossem conhecidos desde a antiguidade, as lentes foram efetivamente introduzidas no Ocidente no final do século XIV. Foi quando vidros de boa qualidade começaram a ser produzidos por artesãos europeus. E, nessa época, começou a produção de vidros convexos de ambos os lados, com jeitão de lentilhas e que, por isso, foram chamados de ‘lentilhas de vidro’ – do latim ‘lenses’, que resultou em ‘lentes’.

No início do século XVII, a qualidade das lentes produzidas em Veneza aliada à sabedoria de Galileu resultou no que pode ser considerado o protótipo dos instrumentos científicos.

O telescópio de Galileu revelou fenômenos desconhecidos até então e que tiveram influência capital na controvérsia entre os seguidores da astronomia geocêntrica e os defensores do heliocentrismo, idealizado por Copérnico. Foi o começo da colisão frontal entre religião e ciência – o que, de certa forma, ainda persiste por causa de intolerâncias e fanatismos.

Ao observar o espaço com seu telescópio, Galileu percebeu que a crença de que a Terra era o centro do universo, ao redor do qual o Sol girava, era totalmente infundada. Além de comprovar a tese de Copérnico, que colocava a Terra girando ao redor do Sol, Galileu percebeu que ela era apenas mais um corpo celeste, entre tantos que existem no espaço. O italiano também registrou uma série de fenômenos e características dos astros até então desconhecidas, como as luas de Júpiter e os ‘anéis’ de Saturno.

Galileu reuniu suas observações astronômicas no seu primeiro livro efetivamente importante, cujo título eu acho belíssimo e poético – ‘O mensageiro das estrelas’ (‘Siderius Nuncius’).

Como ele estava enfastiado de dar aulas de matemática na Universidade de Pádua, espertamente dedicou seu livro ao duque da Toscana, batizando os satélites de Júpiter com o nome deste e de seus irmãos (Cosimo, Francesco, Carlo e Lorenzo).

Assim, Galileu, sob o manto dos Médici, foi nomeado matemático-chefe e filósofo do grã-duque da Toscana, indo morar em Florença.

Não foi uma nomeação secreta, como as de calhordas por calhordas em Brasília. Foi por mérito – Galileu, sem telescópio, já via bem mais longe do que a maioria dos mortais e de imortais de academias.

 

Adalberto Nascimento
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal aposentado, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.

Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras, colaborava semanalmente com este site nos espaços Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal

[Artigo publicado originalmente pelo Jornal Cruzeiro do Sul em 15 de janeiro de 2012]

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