Hitler

Na minha infância, a casa dos meus avós paternos já era muito antiga. Ficava na Avenida São Paulo, grudada a vários casarões, alguns dos quais já bem precários, cheios de umidade e marcados pelas cáries do tempo. Os muros ao redor do quintal da casa eram de taipa e bem largos – feitos por escravos, dizia minha avó.

Dava para deitar em cima e ler gibis, o que eu frequentemente fazia. A casa, mesmo velha, tinha aquele pé direito enorme e frescor inocente – era deliciosa. Vivia cheia de gente e em grande alvoroço, principalmente nas épocas de se fazer bandeirolas para a passagem da Santa pela avenida.

A porta da rua era um verdadeiro portal aos meus olhos infantis. O interessante é que uma cordinha toda ensebada servia para abri-la por fora, do lado da rua. Qualquer um podia abri-la. A casa, a porta, a calçada e a rua eram uma coisa só – tudo nosso. Hoje isso parece conto de ficção.

E, mesmo antiga, a casa já dispunha de um banheiro interno, mas, conforme a arquitetura da época, agregado à cozinha. Mesmo assim, no quintal, continuava soberana a famigerada “casinha”.

É por isso que nos meus tempos do primário pedíamos à professora para ir à “casinha”. Pedido esse que nos constrangia, pois, naquela época, necessidades fisiológicas eram coisas de dar vergonha. E, ainda hoje, muita gente se constrange e pergunta sussurrando sobre a localização do banheiro.

Talvez para evitar esse constrangimento, houvesse no meu curso primário uma régua que passava de carteira em carteira, dando ao portador o salvo-conduto para ir ao banheiro. Tínhamos de calibrar “nossas vontades” em função da chegada daquele passaporte.

Não se falava privada. Mas essa angústia verbal se amenizou com o advento do tal “wc”, ou “toalete”. Em língua estrangeira as coisas tornam-se mais permissíveis, e determinados locais adquirem fragrâncias menos desagradáveis.

Na maioria das casas de antigamente, “a casinha” ficava longe, lá no fundo do quintal. Era, em geral, uma taperinha, dessas que nos desenhos os lobos sopram. Servia para abrigar um buraco negro (o verdadeiro), fechado com tábuas e com apenas uma pequena abertura, em geral quadrada, para que no escuro a gravidade pudesse exercer “criptofunções” abjetas.

Para completar esse quadro insólito, havia também aquele asqueroso gancho de arame espetando pedaços de jornais ou revistas de papéis escorregadios. Estes mais disseminavam más notícias do que limpavam a pauta. Enfim, era uma odisseia na falta de espaço.

Na casa dos meus avós, enfrentar essa odisseia requeria também coragem por causa do Hitler. Para irmos à casinha no período noturno, tínhamos que enfrentá-lo. Hitler era um galo cujo nome, eu supunha, decorria do seu comportamento nazista. Ou talvez fosse uma espécie de homenagem à ascendência germânica do meu avô.

Na verdade, fiquei sabendo depois, o apelido foi dado por um dos meus tios, como gozação. É que o Hitler, não se sabe como, ficou cego de um olho. E, para andar, ele levantava exageradamente a perna correspondente ao olho cego, produzindo uma espécie de marcha semelhante ao passo de um soldado alemão, daquele jeito apavorante que os americanos retratam nos filmes. Ainda bem que, durante o dia, o Hitler ficava preso, mas, sem dúvida, arquitetando germanicamente suas “reides” noturnas.

Foi pensando no Hitler, o galo, que me lembrei daqueles galinhos que encimam algumas torres de igrejas, juntamente com a rosa-dos-ventos, para indicar a direção do vento. Se observarmos um galo, constatamos que ele está sempre agitado. Além de “galar”, ele fica o tempo todo torcendo o pescoço para encher o pulmão de ar e gritar na direção predominante do vento.

E galos também conseguem ser irritantes porque gostam de cantar, clarinar, cocoriar, cocoricar, cucuricar, cucuritar. Somente cérebro de galinha pra aguentar tudo isso.

Essa história de utilizar figuras para indicar direções dos ventos é muito antiga. Desde os tempos gregos, figuras associadas a seres mitológicos eram utilizadas. Mas só no século nono da era cristã, para lembrar as negações de Pedro a Jesus (“…antes que o galo cante…” – Mateus 26:34), foi determinado por um papa de plantão que nas torres das igrejas fossem colocadas figuras de galos.

E a Missa do Galo? A partir do ano 330, a Igreja começou a celebrar o nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro, dia do solstício de inverno romano. No século IV, a comunidade cristã de Jerusalém, em peregrinação, ia a Belém para celebrar a Missa do Natal na primeira vigília da noite dos judeus, na hora do primeiro canto do galo. Por isso, a missa da meia-noite no Natal se chama Missa do Galo.

Nada, portanto, a ver com o nosso Hitler. Muito menos com o
outro – o do bigodinho…

 

 

 

Adalberto Nascimento

Associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal aposentado, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), é pós-graduado na área de Transportes, atua como engenheiro, consultor e professor universitário.
É escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Escreve quinzenalmente neste espaço

Foto: Charles Chaplin satirizou fortemente Hitler e o Nazismo no filme “O grande ditador”, de 1940

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