Mãe ensina

Durante as férias dos primeiros anos do grupo escolar, eu e minhas irmãs tínhamos aulas de reforço dadas pela nossa mãe. Ela sempre comprava os cadernos “Sorocaba ensina” — brochura e de caligrafia. Todos nós, cada um ao seu tempo, tivemos de aprender “de cor e salteado” as tabuadinhas, bem como treinar a escrita, pois “kalligraphia”, do grego, significa “bela grafia”. Lembro-me de que uma frase para ser caligrafada era: “Tudo o que deve ser feito deve ser bem feito”.
Esses treinos duravam até o início do segundo ano. Em seguida, vinham as contas de multiplicar e dividir com números grandes, incluindo a obrigatoriedade de ser fazer a prova dos noves. Hoje, sabemos que essa prova é uma condição necessária, mas não suficiente para darmos como certo o resultado de uma operação aritmética. Mas que a tal prova dos noves dá uma baita saudade daquele tempo, dá.
Posteriormente, li uma frase semelhante àquela que era pra ser caligrafada. “O que merece ser feito deve ser bem feito”, de um tal Lord Chesterfield, que certamente a fez em inglês. No ginásio, a frase da minha mãe veio a ser de especial utilidade para mim. Certa vez, acho que no segundo ano, o professor de matemática avisou-nos que na próxima aula iria passar nossos cadernos em revista. Boa parte dos alunos entrou em pânico. Eu não tinha com o que me preocupar, pois o meu estava em ordem. Na primeira página eu tinha escrito em letra de forma, bem no meio da página, o título da disciplina: matemática. Depois do aviso do professor, escrevi logo abaixo e com boa grafia: “Tudo o que deve ser feito deve ser bem feito”. No dia da revista o professor Nelson, ao pegar meu caderno, fitou-me com um olhar enigmático que ficou impregnado na minha mente — uma espécie de misto de estupefação e admiração.
Além desse fato, aquele dia foi efetivamente marcante para a minha relação com a matemática. Como eu sentava na primeira fileira, vi que sobre a mesa do professor havia um livro cuja capa era diferente da do livro adotado curricularmente. Quando o professor estava no fundão, dei uma levantadinha e consegui ver que era um livro de matemática com capa meio marrom clara na qual um dos autores tinha Galante como sobrenome. Diabinhos e anjinhos saltitaram no meu cérebro. Até se abraçaram. Deduzi que era daquele livro que o mestre tomava como base as questões para as provas. Assim, logo depois das aulas, fui direto à livraria Gutierrez e vi um exemplar idêntico, cujos autores eram Carlos Galante e Oswaldo Marcondes dos Santos.
Pedi que o reservassem para mim, porque precisa de um tempinho pra juntar o dinheiro. Depois de uns dias de economia recebendo uma colaboração substancial dos meus pais, fui a pé até a livraria e de lá voltei também a pé, para casa, mas dando umas paradinhas para folhear o livro. Naquela noite não dormi. Resolvi todas as questões referentes à parte da matéria que estava sendo lecionada. Torcia para que, na prova, o professor utilizasse adaptações daquelas questões.
Na prova, quase caí na gargalhada. Ele não adaptava coisa alguma. Copiava as questões “ipsis litteris”. Nem os nomes dos personagens ele alterava. Daí em diante, comecei a estudar antecipadamente. Quando ele começava um novo assunto eu prestava atenção apenas para tirar uma ou outra dúvida. Resolvi todos os problemas do Galante. Só nota dez e olhares de admiração — do professor e dos colegas.
Todavia, numa das provas fiquei numa sinuca de bico. Caiu uma questão cuja resposta no livro eu tinha certeza de que estava errada. Como o professor copiava as questões, conjecturei que ele também consideraria como certas as respostas do livro. Que fazer? Consegui chegar à resposta errada e a coloquei num retângulo para evidenciá-la, mas em seguida fiz um adendo, explicando que aquela resposta decorria de uma incorreta simplificação e finalizei com a resposta certa. Tirei 10, mas nunca soube qual foi o critério utilizado pelo professor.
Depois daquele ano, as coisas mudaram, mas para mim a frase “os livros são mestres mudos que ensinam calados e jamais se recusam a ensinar” ficou valendo para sempre e para todas as disciplinas. Essa era uma frase que existia na parede da biblioteca do nosso Estadão. Recentemente, comprei um livro excelente cujo titulo é “Alex no país dos números”, de Alex Bellos. Nele, o autor cita que cerca de 2% da humanidade sofre de “discalculia” — uma desordem neurológica específica que afeta a habilidade de compreende e manipular números. Mas é fato que existe uma porcentagem muito maior de pessoas que temem a matemática. Acho que isso é decorrente da forma como ela é ensinada e, sobretudo, do desinteresse dos pais para com o aprendizado dos filhos. Poucos tiveram a sorte de ter uma mãe que, com os caderninhos “Sorocaba ensina”, também ensinou perseverança e amor pelo saber.

 

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

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