Mors certa, hora incerta

Coluna do Dal

Mors certa, hora incerta

No século XIV, relógios mecânicos foram colocados nas torres de muitas igrejas européias. A maioria deles portava a inscrição latina: “Mors certa, hora incerta”. Era uma forma de a Igreja ainda exercer domínio sobre os fiéis, lembrando-os de que a hora poderia não ser exata, mas a morte era uma certeza. Naquela época, a evocação à morte era rotineira.
A saudação usual de algumas ordens religiosas, como a dos Trapistas e dos Mendicantes, era: “Memento mori” (Lembra-te de que vais morrer). O que não deixa de ser uma verdade incontestável. Mas não se faz necessário ficar lembrando disso o tempo todo, embora sirva para conscientizar muita gente de nariz empinado e que se julga imortal. Ou aqueles que, de tanta vaidade, precisarão de duas esquifes – uma para o corpo e outra maior, para o “ego”.

A nossa narrativa tinha como objetivo falar sobre formas de medir o tempo. Como “o espaço urge”, lembramos que antes dos relógios mecânicos havia os sineiros que marcavam o tempo de maneira bastante rudimentar, badalando em determinadas fases do dia. Cabia também aos sineiros convocar os fiéis para as missas e festas religiosas, anunciar falecimentos, homenagear falecidos e, entre outras coisas, fazer algo muito arriscado: atuar contra os relâmpagos.
E, como em geral as igrejas ficam em terras altas, muitos sineiros foram fulminados por raios. Os ignorantes achavam que os sons dos sinos espantavam os maus espíritos da tempestade; os mais esclarecidos acreditavam que a consequente ondulação do ar desviava a trajetória do relâmpago. E essa prática persistiu por um bom tempo, mesmo depois da descoberta sobre a natureza elétrica do relâmpago e da invenção do pára-raios.

Já em nosso país, principalmente em São Paulo, os sineiros tiveram papel fundamental na arrecadação de algumas igrejas. Por vaidade, pessoas de posse também propinavam sineiros para badaladas adicionais a um morto “importante”. Além de deixar a cidade sob uma atmosfera mórbida, tornou-se algo tão irritante que, em 1833, a Assembléia Provincial proibiu por decreto o exagero dos dobres de sinos e regulamentou os repiques. Número de dobres elevados só era permitido em caso de epidemias.

Já que hoje as falcatruas viraram epidemia, seria interessante que voltassem os dobres de sinos. Seria uma forma de a população, irritando-se, deixar de ser passiva diante de tanta bandalheira. Que sejam, pois, convocados sineiros. Muitos!

Adalberto Nascimento
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.
Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).
Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

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