O crocodilo do Alemão

Nos idos de 1865, Ivan Matviéevitch foi visitar uma espécie de galeria em São Petersburgo. Lá, numa das lojas e mediante pagamento de ingresso, era possível ver um enorme crocodilo sendo exibido pelo seu dono, um alemão. E não é que, por essas ironias do destino, Ivan acabou sendo engolido vivo pelo pavoroso réptil? Ele supunha que o animal fosse inofensivo e começou a fazer cócegas no focinho do estranho habitante do Nilo. E de repente, depois de girar o fazedor de cócegas no ar, o bicho engoliu Ivan penas pernas.
Dessa forma, a cabeça do infeliz russo ficou entalada na goela do horrendo animal. Mesmo assim, Ivan podia ser visto e conversar com as pessoas. Esse fato insólito virou motivo de atração para um enxame de novos visitantes e também, óbvio, para o alemão faturar uma grana.
A burocracia, tal como aqui, era tanta que ninguém resolvia o problema do pobre Ivan. Como tirá-lo dali? Rasgando a barriga e sacrificando o animal? Um “amigo” do engolido, talvez um economista, argumentou que a Rússia precisava atrair capitais estrangeiros e que, como se diz hoje em dia, Ivan “agregou valor” ao crocodilo do alemão. Abrir a barriga do animal seria um desestímulo à vinda de novos investimentos estrangeiros.
O leitor poderá achar que enveredamos para a ficção. Não é bem assim. Esse é um resumo adaptado de uma parte do livro “O Crocodilo” (ficção, sim, mas de Fiódor Dostoievski). Através dessa síntese, pretendemos demonstrar a sensibilidade do grande romancista russo que, de forma simbólica, já criticava o que, muito tempo depois, veio a culminar no atual neoliberalismo.
E não é que, mudando de bicho, também somos engolidos? Mas por tubarões. Essa história de que tudo deve estar de acordo com os modernos ditames econômicos é para se pensar muito. Esses juros abusivos, por exemplo, são ótimos para crocodilos e tubarões. Num país como o nosso, com tremenda desigualdade social e perversa distribuição de renda, muita coisa torna-se execrável.
Um exemplo é esse tal empréstimo consignado que suga, a juros extorsivos, muitos dos que têm pouco. Uma espécie de “agiotagem de escala”. Se as parcelas do empréstimo já são descontadas do salário, por que juros tão altos? Provavelmente porque já sabem, a priori, que a inadimplência será inevitável. “Vamos sangrar logo o que pode ser sangrado”. Talvez por isso o teatrólogo Bertolt Brecht já questionava: o que é roubar um banco perante fundar um banco? E, dentre outras coisas, é repugnante ver pessoas idosas sendo literalmente arrastadas para contrair empréstimos nessas financeiras desumanas. Esse tipo de assédio deveria ser proibido.
E, a despeito dessas e outras excrescências, tornou-se uma espécie de heresia criticar o neoliberalismo. Mas o que ele nos trouxe até agora? Antes, na triste época dos militares, era preciso primeiro fazer crescer o “bolo” para depois dividi-lo. O bolo cresceu, não foi dividido como se apregoava, e estamos até hoje pagando os ingredientes. E, para felicidade dos poucos que fatiam bolos, veio a atual moda neoliberal. O Estado é incompetente e, portanto, vamos privatizar tudo. Excelente para crocodilos e tubarões, é claro.
Recentemente, os atuais “sabidos” deste país ficaram semanas para elaborar o “Plano de Aceleração do Crescimento”. Esse “PAC” segue a moda “politico-marqueteira” de criar acrônimos. Leva é jeito de virar traque. E por que só agora? Um demonstrativo inconteste de que não temos um projeto de nação. Tudo sempre no curto prazo, com vistas às próximas eleições. E a Educação? Ah, isso leva muito tempo. É coisa para estadistas.
Se nem o “apagão aéreo” foi definitivamente resolvido, como resolverão este país? Chegamos, de forma vergonhosa, à situação paradoxalmente surrealista na qual os nossos aeroportos se tornaram locais para viajantes “ficarem a ver navios”… No início mencionamos São Petersburgo, cidade construída por Pedro, o Grande. Grande porque foi um estadista, mas, também, porque era mesmo grande, com mais de dois metros de altura. E meio doido. Consta que ele colocou numa solução de álcool, no quarto de dormir da sua esposa (a famosa Catarina), a cabeça decepada de um amante dela, irmão de uma amante dele.
E também falamos de Dostoiévski, de quem sou cíclico leitor assíduo, desde que no início da década de sessenta, graças à tenacidade germânica da minha mãe, fiquei sócio do Gabinete de Leitura Sorocabano. Na atmosfera solene daquele local, eu e minhas irmãs consolidamos o gosto pela leitura. Na época líamos traduções do russo para o português de Portugal e me intrigavam as tais “chávenas de chá”. Isso acabou sendo benéfico. Adquiri o hábito de ler com um dicionário do lado. A literatura russa é maravilhosa, e Dostoiévski um monumento. Pena não podermos dizer que o nosso país é maravilhoso e também com estadistas monumentais.

⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, Adalberto Nascimento atuou como engenheiro, consultor e professor universitário. Foi o associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal de carreira, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96). Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Além de publicados pelo jornal Cruzeiro do Sul, entre outros veículos, seus artigos ilustraram e continuam ilustrando o conteúdo deste site “Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal”.

 

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