Coluna do Dal

Do Primário

Há alguns dias, na fila do caixa de uma farmácia, encontrei um amigo de infância. Pois é. Ultimamente tornei-me assíduo frequentador de consultórios médicos e farmácias. Sinais do tempo – fiquei velho. E não me venham com essa lorota de melhor idade. Todavia, ela pelo menos serve para que, com outros velhinhos, antigas e saborosas recordações venham à tona.

Nessa ocasião, encontrei-me com Geraldo Schmidt, aparentemente menos velho do que eu – e sem o cabelo pintado com aquela usual cor de “bosque” como muitos costumam fazer. Conversamos sobre o nosso tempo do Instituto Matheus Maylasky – escola primária para filhos de ferroviários da gloriosa Estrada de Ferro Sorocabana. Como não poderia deixar de ser, falamos sobre as variadas idiossincrasias de saudosas mestras.

Tenho comigo que curti aquela primeira e sutil paixão infantil com a Dona Solange – uma paixão unívoca, num sentido único, de mim pra ela. Quando ela passava perto da minha carteira, seus lindos olhos e a fragrância de seu perfume mexiam com todos meus hormônios, proporcionando-me uma sensação agradavelmente etérea. Por outro lado, a lembrança que tenho da Dona Alda também é bastante agradável, por causa daquele olhar meigo e bondoso que se destacava no ambiente sisudo daquela escola.

Lembramo-nos do Negrelli. Eu, Geraldo e João Negrelli fomos os três primeiros alunos da classe durante todo o curso primário. Era o triunvirato luso-germânico, germânico e italiano. Numa lousa lateral, nossos nomes eram colocados em destaque com as posições periodicamente alternadas, mas nunca deixamos de estar lá. Além disso, para orgulho dos nossos pais, portávamos no peito aquela fitinha verde e amarela, exclusiva para bons alunos.

Nunca mais vi João Negrelli. Consta que ele ingressou por concurso como funcionário do Banco do Brasil. Suponho que agora ele esteja aposentado e, com certeza, vivendo com um salário digno.

Como mencionei no início, nossa escola era para filhos de ferroviários. E acho que era para formar ferroviários. Tanto é que de um lado da classe ficavam pendurados em locais pré-definidos nossos macacõezinhos com “MM”, iniciais do patrono bordadas no bolso. Ao chegarmos, colocávamos essa indumentária sobre as nossas vestes. Em dias de calor, cheiros de cabritinhos exalavam na classe, principalmente depois do recreio.

Lembro-me de que um cavalete era colocado num canto da sala portando gravuras que nada tinham a ver com a nossa cultura. Eram imagens de bucólicas paisagens europeias ou norte-americanas para servir de inspiração a uma composição (criar uma historinha) ou descrição. Neste caso, com uma dica a priori: “Tenho diante de mim um quadro que descreverei. No primeiro plano…”.

Do lado oposto ao dos macacões ficavam os aventais das meninas que frequentavam a escola noutro período. Era assim: meninos de manhã e meninas à tarde. Uma segregação idiota integrante da moral hipócrita vigente na época.

Como já disse, o ambiente da escola era carrancudo. Volta e meia choviam reguadas, puxões de orelhas e de cabelos. Muitas vezes, sem culpa alguma, ficávamos de castigo – de joelhos e com os braços levantados. Acho que frustrações de algumas professoras eram descarregadas nos pimpolhos, a maioria inocente e temerosa de que os pais soubessem do ocorrido.

Não obstante a rigidez vigente naquele ambiente, sempre havia “capetinhas” indomáveis que eram submetidos a castigos insólitos, hoje considerados bárbaros.

Algumas professoras colocavam avental num dos capetinhas e o deixava na porta para ser ridicularizado por quem passasse no corredor.

Numa ocasião, recebendo a reguinha -passaporte para ir à casinha -, vi um garotão de avental na condição descrita. Como não consegui segurar o riso, ele falou: “Vou te pegar na saída”. Na volta da casinha, passei olhando para o outro lado do corredor para não exacerbar a raiva do castigado. Passei o resto da aula encafifado e lembrando-me da advertência do meu pai: “Numa briga, não seja covarde. Enfrente o adversário, mesmo apanhando”. Assim, fiquei pensando num jeito de como enfrentar aquela fera.

Por sorte, começou a chover. Nessas ocasiões, não dava outra. Meu pai sempre estava de prontidão na entrada da escola com capas e guarda-chuvas. Isso também acontecia nas épocas em que minhas irmãs frequentaram a mesma escola. Épocas em que aqueles castigos abomináveis já tinham sido eliminados.

Meu querido pai morreu de enfarte com apenas 52 anos. Recentemente, com angústia, fiquei pensando nele, ao reler no “Livro do Desassossego” (de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa) a frase: “O coração, se pudesse pensar, pararia”.

Enfim, termino este artigo concluindo que realmente coração não pensa, mas sente saudades.

 

Adalberto Nascimento
(⭐6/6/1946 | ➕1/7/2019)

Associado n.º 1 da AEASMS, servidor municipal aposentado, ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96).

Engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atuou como engenheiro, consultor e professor universitário.

Escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras, colaborava semanalmente com este site nos espaços Coluna do Dal e Desafio do Prof.º Dal

[Artigo publicado originalmente pelo Jornal Cruzeiro do Sul em 17 de agosto de 2013]

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