Uma experiência interessante pode ser feita com dois espelhos de tamanhos razoáveis.
Colocando-os dispostos em ângulo reto ou, para melhor entendimento, justapostos e tendo como união a linha do canto de duas paredes perpendiculares, o leitor poderá se ver como as pessoas o veem.
Interessante como experiência e, talvez, angustiante para as pessoas vaidosas e que “não aceitam o efeito do tempo a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens”, como diria Fernando Pessoa.
O tempo é impiedoso para quem é obstinado pela sua imagem exterior. Não tem botox que resolva. E, pelo jeito, essa droga só piora as coisas. A pessoa “botoxada” perde toda a naturalidade. O sorriso, via de regra, fica num limiar cinzento entre choro e bocejo.
Pequenas correções plásticas são até aceitáveis e, às vezes, necessárias. Agora, querer, a todo tempo, enganar o tempo é outra coisa. Ele é um zagueirão argentino implacável que não se deixa ser driblado.
Sobre isso, o famoso escritor (argentino) Jorge Luis Borges exacerbava, dizendo que, com o tempo, as nossas fotos vão ficando piores que a realidade.
E o evoluir inexorável dessa realidade pode ser visto a cada dia e em qualquer espelho, que não são ludibriados por botox, tintas e outros efêmeros artifícios.
Só resta, portanto, aceitar o inevitável e com dignidade. Quem se vê velhinho no espelho deve dar-se por feliz: está vivendo muito.
Como informação às mulheres, usuárias contumazes de espelhos, existe no Museu do Louvre um espelho esplendoroso montado em marfim e que pertenceu a Leonardo Da Vinci.
É para ser visto e lido. Na parte inferior contém a seguinte legenda: “Não te queixes de mim, ó mulher. Só te devolvo o que tu me dás”.
Por falar em Da Vinci, ele também escrevia da esquerda para a direita, para ser lido especularmente, ou seja, com auxílio de um espelho. Uma hipótese hoje aceita é a de que, além de tentar enganar a Igreja, ele fazia isso porque era canhoto e não queria borrar o que escrevia.
Entretanto, os escritos especulares de Da Vinci ainda carregam muita inquietação pelo fato de a literatura, desde a Antiguidade, estar repleta de lendas envolvendo espelhos. Inicialmente (cerca de 3.000 a.C.), estes objetos eram metálicos, feitos de bronze e polidos com areia; mais tarde, passaram a ser de prata polida.
Em geral, produziam imagens pouco nítidas e distorcidas. Somente no século 16 adquiriram a forma hoje conhecida, pela utilização de um amálgama de mercúrio e estanho que permitiu ao vidro toda a sua transparência e reflexão.
A palavra espelho vem do latim speculum, significando “instrumento para olhar”. Speculum também deu origem à “especulação”, que significava “observar as estrelas através do espelho”. E especulador também tinha o sentido de “observador atento”. Todavia, “observadores atentos” agindo de má fé consagraram o termo “especulador” no sentido hoje conhecido.
Aliás, foi também na Idade Média que o termo “banco” ficou consagrado como estabelecimento de crédito. Na Itália, as transações com pesagens de moedas eram feitas sobre bancos de madeira. De lá, o termo banco, bem como banca (fundo de dinheiro) se espalhou para o mundo.
Quando alguém falia, ficava quebrado – com a “banca rotta” (“banca quebrada”) que, em português, virou bancarrota. Hoje, como sabemos, muita gente que foi à bancarrota insiste em viver “charutosamente” e, de forma patética, “botando banca”.
A recente crise financeira mundial foi causada por “observadores atenciosos” que levaram instituições, bancos e até países à bancarrota.
Além dessa crise, vivemos numa época de agiotagem em grande escala. Somos assediados constantemente para cairmos no conto do cartão de crédito.
Consultores de “atenciosas instituições” insistem para aderirmos aos tais cartões “safadusplus”, “maxmutretus”, “sacanusmaster” e demais “malandruscards”.
Pelas propagandas, dá pra inferir que somos julgados como habitantes de um “Bundoquistão”. Basta um desses cartões para usufruirmos de uma vida sultanesca, férias em locais paradisíacos, hotéis estrelados, carrões turbinados e assédio de gatonas siliconadas.
Os marqueteiros são craques nisso: mostrar bônus sem nenhum ônus. Essas falsas ilusões também são apregoadas “ad nauseum” pelos tais “teleconsultores”, causando amolações que “deveriam estar sendo” proibidas.
A alegação de que isso geraria desemprego é papo furado. Tem muita coisa mais útil para se fazer neste país. E tem muito dinheiro pra gerar empregos. Basta um pequeno porcentual do que tem sido usado pra salvar tubarões, em geral “observadores de má-fé”.
Por fim, torna-se imprescindível cairmos fora dessa cultura de consumismo desenfreado de quinquilharias e inutilidades. É preciso que nos espelhemos em culturas mais sábias, nas quais as pessoas valem pelo que são, e não pelo que têm. São desses espelhos que precisamos.
ADALBERTO NASCIMENTO Ex-secretário de Edificações e Urbanismo (1983/88), de Transportes e presidente da Urbes (1993/96), é engenheiro civil graduado pela Poli-USP (1972), pós-graduado na área de Transportes, atua como engenheiro, consultor e professor universitário nas áreas de Sistema Viário, Trânsito, Transportes, Planejamento Urbano, Informações Geográficas e Geoprocessamento. Associado n.º 1 da AEASMS e servidor público municipal aposentado, é escritor, autor de livros de crônicas e curiosidades matemáticas e membro da Academia Sorocabana de Letras. Escreve semanalmente neste espaço.